07/12/2016

Do populismo

Nunca gostei da Merkel - obviamente - mas sempre lhe admirei a coragem. Na situação dos refugiados, por exemplo, soube mostrar liderança não se encaminhando no discurso fácil e abrindo as portas a mais de um milhão de refugiados, se calhar contra os seus interesses políticos. Agora, caiu no facilitismo. Porque, como muitos outros, talvez acredite que é mais fácil vencer o populismo colocando-se a seu lado, amenizando o discurso de modo a abarcar tantos quanto possível. Parece-me - para este e para todos os casos - que é má estratégia, e é certamente errado ao nível dos princípios. Não é assim que se vence o populismo. Só se faz isso rejeitando as análises e soluções simplistas, e frequentemente divisivas, que são propostas por partidos populistas e da direita radical, e tomando as rédeas do debate político sem medo de assumir posições mesmo que estas não sejam, por vezes, agradáveis e consensuais. Unindo, e nunca dividindo.

04/08/2016

De Trump ou de como a raiva conquistou a América

Como no poema da Maya Angelou, "Still i rise", Trump também podia dizer "podem-me riscar da história e espezinhar-me no chão sujo que, ainda assim, eu vou-me levantar". Bem, Trump nunca diria isto por duas razões: a primeira é porque não fosse já o infeliz acontecimento da Maya Angelou ser negra, ainda era mulher, e Trump já provou várias vezes que tem algo contra isso; a segunda é porque Trump nunca admitiria que alguém o tentaria riscar da história, pois isso significaria, por um momento que fosse, por em causa aquilo em que ele realmente acredita: que ele é a história.

Mas a verdade é que não devem sobrar muitos adjectivos negativos que possam ser colados a Trump. Classificando-o numa palavra, ele já foi "misógino", "racista", "arrogante", "idiota", "perigoso", "Hitler", "asshole", "narcisista". A lista continua, mas Trump prossegue o seu caminho, contra tudo e contra todos, em busca da palavra que lhe falta para o descrever realmente: "Presidente".

A pergunta que se coloca, para dar razão a esta divagação, é a de como é que isto foi possível. Como é que um agitador e estrela de televisão rasca, um tipo sem princípios políticos coerentes que terá, no entender deste humilde cronista, mais defeitos que qualidades, poderá estar a um passo de se tornar Presidente dos Estados Unidos da América.

Trump move multidões. A afluência às urnas durante as primárias republicanas foi enorme. Nos Estados do Super Tuesday, por exemplo, registou-se 8,5 milhões de eleitores. Nos mesmos Estados, em 2012, foram 4,5 milhões. Durante as primárias, enquanto os seus adversários organizavam jantares e comícios em salas pequenas, porque não enchiam espaços maiores, Trump falava em pavilhões e estádios cheios. Não há nada mais básico em política do que arrastar multidões.

E essas multidões juntavam-se - e junta-se -  para ouvir um discurso inflamado, de ódio, de mentiras. Trump já atacou tudo o que havia para atacar. Abusa de estereótipos para tentar explicar a América, o status quo. O preocupante é que Trump não ganha apesar de ser assim. Trump ganha porque é assim. Essa é que é a grande questão desta campanha: esta campanha diz mais sobre os Americanos do que sobre Trump.

O fenómeno Trump tem raiz na busca da América perdida. Segundo o Wall Street Journal, 73% dos Americanos consideram que o país está no caminho errado. Trump fugiu dos intermediários normais, da imprensa, dos jornais, inicialmente do partido e das sondagens para ir ao encontro directo com o público e dizer "eu sou como vocês". Trump soube canalizar a raiva contra o sistema, contra os políticos, dos americanos descontentes com o caminho da América, descontentes com a economia, com o emprego, descontentes com políticos corruptos e que não cumprem promessas, descontentes com o políticamente correcto, e acima de tudo, o medo - sempre o medo - para seu benefício. Criou um discurso dualista, do "nós contra eles". Porque percebeu que os americanos não querem alguém que sinta a sua dor, querem alguém que também a tenha. Como li algures por aí, Trump é o "voto do dedo do meio".

Mas a minha grande preocupação é o seu discurso racista, discriminatório. Porque a sua ascensão mostra que há muitos que se revêm nesse discurso. E isto levanta a grande questão do fenómeno Trump. Porque se verifica - como a realidade tem mostrado a pontapé - que a América ainda não se libertou da discriminação onde é mais importante: não nas leis, mas nas mentalidades. Mostra que se calhar grande parte dos Americanos só estava à espera de uma voz para os seus anseios realmente se mostrarem, anseios xenófobos, racistas, discriminatórios. Apareceu Trump. E Trump não é um só uma doença, um problema. Acima de tudo, é um sintoma.

Os seus adversários acharam que ele se auto-derrotaria com a sua "big mouth", que isso fazia dele um alvo vulnerável. O problema é que os americanos já o conhecem à muitos anos e já sabem o que esperar dele. E Trump não quer unir, ele não precisa de unanimidade. Os grandes políticos tentam unir. Trump usa a táctica do Divide et Impera, por isso não tem medo de ter muitos americanos contra ele, ele só quer 50% mais um.

Ainda há muita tinta por correr e os votos ainda têm que ser contados, e fazer previsões em política é arriscado. Hillary não é uma "phenomenal woman" (obrigado outra vez, Maya Angelou), e apesar de ser um pouco aquilo que muitos americanos se querem ver livres, terá uma chance maior de ganhar. Tentará roubar votos nos republicanos moderados, o que arrastará o seu discurso ainda mais para a direita, verá os casos do seu marido voltarem a ressurgir - e quiçá desvendará um segredo sobre ele no processo, para levar a conversa para terrenos mais emocionais - e será levada ao chão por Trump, mas terá mais argumentos que Donald. Mas Trump pode ser o primeiro de uma vaga de políticos como ele: simples, com um discurso direccionado ao ódio, afastados do establishment e punitivos, que vão aparecer enquanto a principal questão não for resolvida: a da desigualdade económica e do racismo. Que, na América, são dois termos para a mesma coisa.

Para perceber Trump é preciso perceber a raiva que a América tem. Numa crónica fantástica, Joel Stein cita Thomas J. Harbin: a raiz da raiva é um sentimento de inferioridade. "Make America Great Again". Bom, se calhar nisto Trump acertou. A América já não é a potência que era. Mas não será Trump, de certo, que a vai consertar.

22/07/2016

Do terror, II

Enquanto a imprensa e algumas pessoas continuarem a destilar ódio e a culpabilizar uma religião pela acção de uns poucos, tudo está bem. Analisa-se de um modo dualista, do nós contra eles, e mete-se tudo no mesmo saco: terroristas, árabes, refugiados, o Islão. A sacra superioridade moral europeia contra o resto.

Mas acho que vamos ter um problema muito maior para resolver quando a reacção ao terror for mais terror. Quando o ódio sair das páginas de jornal e das bocas para as ruas, para as mesquitas, para as montras das lojas. E para o justificar, lembrar que o anti-semitismo, por exemplo, fez mais mal ao mundo que os judeus.

15/07/2016

Do terror, I

Há um conto árabe, muito antigo, que se conta assim: um cavaleiro, a caminho de Bagdade, encontrou uma velha seguindo também para lá, apressada. “Porque te apressas para Bagdade?”, perguntou o cavaleiro. “Porque eu sou a Peste e vou lá tirar cinco mil vidas”, disse a velha. O cavaleiro apressou-se ainda mais e avisou os cidadãos de que a Peste vinha aí. Dias depois, quando o cavaleiro abandonava a cidade voltou a encontrar a velha. Disse-lhe que o havia enganado, que em vez de cinco mil vidas havia tirado cinquenta mil.

- Não. – disse a Peste – Cinco mil e nenhuma mais. As outras foi o Medo que as tirou.