04/11/2017

Da arte e do criador

O Wagner era um conhecido anti-semita. Quando o maestro Daniel Barenboim (um judeu israelo-argentino) conduziu uma ópera de Wagner em Israel foi criticado. Defendeu-se dizendo que, apesar da pessoa de Wagner ser censurável, a sua obra não era e não tinha uma única nota anti-semita. É mais difícil discernir o homem da arte nas notas do Wagner do que, por exemplo, em “O Nascimento de uma Nação” do D. W. Griffith. Um “Fá” e um “Sol Sustenido” são sempre um “Fá” e um “Sol Sustenido”, enquanto que um filme que argumenta que o KKK foi o cavaleiro alado que salvou a América dos negros estúpidos e alcoólicos não deixa muito espaço à consideração sobre se estamos ou não perante uma obra de arte discriminatória, pois essa discriminação é feita numa escala em que só poderia ter sido criada por um homem com semelhantes preceitos.

Não foram as obras do Wagner ou do Griffith, todavia, que me impeliram para este texto, mas são um bom ponto de partida. A questão que quero colocar é a seguinte: quando estamos perante uma obra de arte, quando é que começa o homem e acaba a obra? Devemos separar a obra do artista, ou devemos rejeitar o filme pelo seu realizador, o livro pelo seu escritor, a música pelo seu compositor? A obra de um artista tem valor por si só, mesmo quando foi criada por um ser humano que fez sofrer outras pessoas? Será o impacto que a obra cria em nós mais ou menos importante que as acções do seu criador?

Creio que são questões muito complicadas. Admiro o Cohen (neste caso estou claramente a pecar por defeito) a Patti Smith, o Zeca Afonso, o João Ribas, o Fellini, o Kubrick, a Elis Regina, o O’Neill, o Robert Capa, o Galeano, o Eduardo Gageiro, o Gabo, o Steinbeck e tudo isto porque amei a sua arte, que me levou a conhecer o autor, e não consigo dissociar a obra do criador. É verdade que enquanto a avaliação que se faz de alguém é um julgamento moral, quando colocada na arte essa avaliação não se aplica, pois é um julgamento estético. Mas quando vemos a arte para além do plano estético, quando analisamos a mensagem, o seu contexto, quando analisamos esse pedaço dentro da obra do criador, não se consegue tentar perceber isso sem tentar perceber o autor.

O que devemos fazer, então, à arte daqueles que, para os padrões normais e legais das sociedades modernas, foram por caminhos menos honrosos? Devemos focar-nos principalmente no plano estético, entender a arte como uma criação com vida própria e esquecer o autor? Ou devemos afastar e não glorificar a arte daqueles que fizeram sofrer outros seres humanos? Em suma, como questiona o poema do W. B. Yeats, “como isolar da dança a dançarina"?

29/09/2017

Das eleições

Decorem bem as caras daqueles em quem vão votar. O político autárquico é, muitas vezes e em todas elas infelizmente, uma espécie sazonal que só aparece de 4 em 4 anos.

26/07/2017

Da intemporalidade, ou de como tudo está na mesma

“O Sal da Terra” (1954), de Herbert Biberman, é uma obra intemporal. Expõe, na década de 50 tão bem quanto neste século, as desigualdades de raça, de género e de classe através de uma greve de mineiros. Mostra tanto o racismo do insulto verbal quanto o racismo económico, a discriminação existente nas diferentes condições de vida dos trabalhadores americanos e mexicanos, e a luta pela justiça racial e a paridade económica dos trabalhadores mexicanos. Mostra as violações na dignidade dos imigrantes e dos deslocados, o antagonismo entra a produção e a gestão, e o poder quase infindável das classes altas. E mostra, e talvez seja uma das suas características mais notáveis, a luta de um grupo de mulheres, que se liberta das suas amarras (as lides da casa, a opressão dos maridos, a educação das crianças) e luta pelo que considera justo. Mostra, nos olhos de Esperanza Quintero (retratada por Rosaura Revueltas, uma das poucas actrizes profissionais do filme) que a mulher mais bela é a mulher que luta.

"O Sal da Terra" é uma obra intemporal, e um dos maiores traços de genialidade artística é a intemporalidade. As lutas que o filme mostra são guerras que ainda nos faltam vencer: a guerra pela igualdade racial, pela igualdade económica, pela igualdade de género. Esta é a parte triste da genialidade do filme: é que isso não está relacionado com a genialidade de Biberman ou com a análise acutilante e premonitória de Michael Wilson, o guionista. Eles não sabiam que o filme ia fazer sentido 60 anos depois, nem sequer pensaram nisso. Isso está relacionado com um sistema podre que não mudou e que, ainda hoje, é liderado por aqueles que os mineiros e as suas mulheres combateram.

29/04/2017

Da situação EUA/Coreia do Norte

Victoria Guzmán, da Crónica de uma Morte Anunciada, é uma personagem interessante. Muitas das personagens do livro baixam os braços perante aquilo que consideram inevitável, perante o destino. Victoria não. Victoria é das poucas que luta contra o inevitável. Quando Santiago tenta violar a sua filha, esta permite-o. Sabia que estava destinada a isso: Victoria havia sido seduzida pelo pai de Santiago. Era como um ciclo, era o destino. Mas Victoria enfrenta o destino e Santiago, de faca em punho. Não queria isso para a sua filha.

É a mesma Victoria que, a certa altura, diz algo interessante: "porcos com frio e homens com vinho só fazem ruído". 

Não sei se Trump e Kim Jong-un são porcos com frio ou homens com vinho, e desconheço que Victoria alguma vez tenha dito algo sobre lunáticos doentes. Não sei se eles só vão fazer ruído. Não sei se não seremos Victorias, meros peões na luta contra a inevitabilidade. O que eu sei (ou acho) é que essa é uma das grandes características dos nossos tempos: a incerteza. E a incerteza está a ser dominada por lunáticos.