29/11/2018

Do pessimismo

Sou um pessimista. O adágio do Canto III do Inferno de Dante podia ser meu também: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Se a ideologia é um modo de ver o mundo e a vida, a minha ideologia é a do pessimismo. Acho sempre que tudo vai dar merda. O Trump vai dar merda. O Bolsonaro vai dar merda. O Passos Coelho voltará e, claro, vai dar merda. O Acordo Ortográfico nunca vai ser revogado. O próximo filme do Tarantino vai ser mau e eu não vou conseguir ver mais nenhum concerto do Jorge Palma. O Sporting não mais voltará a ser campeão. O aquecimento global vai dar merda e vão dar cabo da Amazónia. Vai haver uma vaga de calor gigantesca que durará 30 anos, que decerto me deixará pelas ruas da amargura porque tudo o que é mais de 23 graus já me é penoso, e o mundo inteiro vai entrar numa guerra mundial que acabará com os Estados Unidos a tomarem a fonte da Ónega, em Pendilhe, e com o seu presidente a fazer um discurso, em sandálias e calções porque vai estar mesmo muito calor, no Largo da Latada.

A minha vida não será certamente melhor. Andarei de emprego em emprego porque nada me satisfaz, com a constante de nunca ter lugar para estacionar, e sem um rumo. E se não sabendo para onde vou qualquer estrada me lá leva, como dizia o George Harrison, as minhas estradas, as figuradas e as literais, estarão sempre esburacadas e com muito trânsito. E vai estar calor lá fora e o meu ar condicionado vai estar avariado. As estradas vão ter sempre SCUT’s, e vou ter sempre que ir aos correios porque eu, estúpido, nunca meterei Via Verde. Casarei, eventualmente, para viver a máxima do Lampedusa n’O Leopardo: chamas por um ano, cinzas por trinta. Claro que o meu casamento não durará trinta anos: cedo ficarei um bêbado divorciado, demasiado bêbado para me lembrar se me divorciei porque bebia muito ou se comecei a beber porque me divorciei. Se tiver a sorte de chegar a velho, acabarei sozinho e careca, num lar, sempre com os pés frios, mesmo com o raio da vaga de calor lá fora. Nunca conseguirei fazer as licenciaturas em arquitectura ou história que tanto quis fazer por gosto. Terei um ou dois filhos, que certamente, só para me lixarem o juízo, ou serão do Benfica ou uns conservadores nojentos, e que nunca me irão ver. A senhora do lar vai-me trazer um pouco de água, muito pouco, e vai pô-la demasiado longe para lhe conseguir chegar sentado. Vou estar condenado a ver TV o dia inteiro, a babar-me, a ver anúncios da Trivago até ao fim dos meus dias – sim, porque até com a porra duma guerra mundial essa merda vai passar na TV.

Há duas fontes para este pessimismo, que reconheço ligeiramente empolado nos dois parágrafos em cima. O primeiro é a nossa condição de mortal. Eu sou ateu: para mim, isto vai acabar mal. O segundo é bem mais negro. O pessimismo devia ser a condição natural do homem, porque qualquer pessoa que conheça suficientemente bem a História, que não é mais do que a ciência da natureza humana, consegue perceber que nós arranjamos sempre novas e inovadoras maneiras de fazer esterco. Se calhar não sou eu que sou pessimista. Se calhar é o mundo que é mau. Se calhar é o homem que é mau.

N’A Raiva, do Sérgio Tréfaut, o homem mau é personificado num latifundiário. Claro que concordo com a caracterização. Vi o filme e amei, e impeliu-me a escrever sobre isto. Pode não parecer mas isto é uma crítica ao filme - não tanto sobre o que ele é, mas sobre o que me fez pensar. Eu não descobri a fórmula – a minha fórmula – para lidar com as adversidades e com os backslaps da vida e do mundo a ver o filme. Mas quis escrever sobre como filmes destes nos libertam do marasmo, sobre como como a arte é o maior escape, sobre como o mundo é um lugar melhor quando se pode ler Dante, ouvir Beatles e ver Visconti, sobre como o amor - seja à terra, seja à causa, seja a alguém - é uma força poderosíssima. Sobre como – e acho que é essa a grande mensagem do filme – a única coisa que às vezes podemos fazer é lutar. E sobre como enquanto pudermos lutar, tudo faz sentido.

08/11/2018

Do Leonard Cohen

Lembro-me bem da primeira vez que ouvi falar do Leonard Cohen. Era 2009. Eu tinha 16 anos e arrumava caixas de fruta na mercearia da minha mãe a cantarolar Led Zeppelin e Tara Perdida. Ouvia Black Sabbath, Clash e Rush, o velho rock and roll de guitarradas e raiva a sair em forma de power chords (e Zeca Afonso, claro). E, naquela noite, estava no Estádio de Alvalade com o meu tio, a poucos minutos de começar o concerto dos AC/DC, quando passou um anúncio de um concerto do Cohen nos ecrãs gigantes. O meu tio apontou para o ecrã: “este gajo é fixe”. Olhei. Onde ele viu o fixe, eu vi um velho de chapéu e fato preto a cantar uma espécie de valsa, achei na altura, provavelmente ouvida por outros velhos de fato preto que tiraram o chapéu por deferência aquele tipo com nome judeu. Era a “Dance Me to the End of Love”. Não gostei, e eu ia ver o Angus Young a partir aquela merda toda, não tinha tempo para velhos angustiados.


Nessa noite, quando cheguei a casa, fui pesquisar o velho. O nome, por acaso, não me saiu da memória. E lembro-me do assombro instantâneo que senti. Percebi na altura que algo havia mudado. Nessa noite, sei-o hoje, tive um guarda-roupa à minha frente. E eu escolhi o fato preto e o chapéu, para usar a vida toda.


(o concerto dos AC/DC foi óptimo e, entretanto, já agradeci ao meu tio)

25/09/2018

Da tourada

Nenhuma tradição escuda a tourada. Nenhuma liberdade justifica a crueldade. E não é possível nenhuma erudição ou elevação para contestar tais actos, de tão bárbaros que são. Só a caracterização: filhos da puta. Todos. Filhos da puta

19/01/2018

Do feminismo pop

Acho que há uma tendência para despolitizar alguns temas, prevalecendo a acção individual e o seu elogio, a atitude, em vez das estruturas e da acção política colectiva. A onda feminista é um bom exemplo disso. Creio que prevalecem os discursos de celebridades, as “hashtags”, o “empowerment”, os elogios às mulheres que chegam a CEO de grandes empresas, às modelos que confrontam o statu quo com as suas pernas não depiladas.

As redes sociais e o seu culto ao individualismo têm algo que ver com isso, porque esses acontecimentos são mais facilmente virais e partilháveis, e é isso que define esta onda feminista. Mas acredito também que o impacto que o sexismo e a sociedade patriarcal têm na esfera privada e pessoal de cada mulher deva impelir para isso. Afinal, um problema que ataca individualmente pode ter uma resposta individual.

Eu não tenho absolutamente nada contra isso. Acho que todas as formas de luta - se é disso que se trata – são legítimas. Mas é preciso escolher como queremos fazemos a luta. Podemos acreditar que as imagens e os exemplos das mulheres que sobem as escadas do dinheiro e do poder se traduzem em benefícios para o resto das mulheres do mundo, e que isso é suficiente. Ou, então, podemos politizar a questão e lutar contra um sistema que legitima e aumenta as desigualdades, que precisa delas para se manter, que tem nele grupos sub-representados e em desvantagem estrutural.

A cultura pop pode ser um óptimo instrumento para disseminar as ideias pela sociedade. Mas uma mudança efectiva e real só se consegue, creio, politizando a questão e levando-a ao debate, à rua, ao voto.