28/10/2021

Do OE

Em política, ao contrário do que os procedimentos da democracia liberal querem fazer parecer, ao contrário do que os comentadeiros do regime querem mostrar, ao contrário do que os grunhos querem invocar em busca de uma pseudo-ligitimação, o julgamento não se faz nas eleições. Faz-se na História.

É por isso que há partidos que duram 100 anos.

04/08/2021

Da inocência

O Manuel Pinho é inocente e lançou um site para o provar. O Vara é inocente. O Zeinal Bava é inocente. O Henrique Granadeiro é inocente. O Sócrates é inocente. O Isaltino era inocente e o Ricardo Salgado esqueceu-se de muita coisa mas não se esqueceu que é inocente. Os tipos das viagens à Turquia são inocentes. O Vieira é inocente, e inocentes são o Rui Rangel, a Fátima Galante e o Vaz das Neves. São todos inocentes e os seus crimes são todos alegados. Alegada fraude fiscal, alegada corrupção passiva, alegado abuso de poder, alegado favorecimento, alegado recebimento indevido de vantagem. Tudo é alegado neste sítio que é, alegadamente, um país.

Isto não é uma crítica à justiça, nem um ataque à presunção da inocência, nos quais acredito. Mas não deixa de ser curioso que todos os envolvidos nos casos de alta roda judicial se declarem sempre inocentes, e que esses sejam sempre grandes cabalas.

É por isto que a maior prova de avanço civilizacional não está em descobrirem uma vacina para a Covid-19 em meses, ou em dois ou três bilionários meterem os seus bilionários rabos no espaço em foguetões que parecem uma piroca. A maior prova de avanço civilizacional ainda está por ocorrer e é esta: que alguém desta laia chegue à porta do tribunal e que diga, alto e bom som, "sim senhor, eu roubei e não foi pouco".

08/04/2021

Da habitação

 A CM de Lisboa lançou, mais uma vez, o programa da Renda Acessível para jovens da classe média. É um programa com valor, ainda que meramente simbólico para resolver o problema da habitação na cidade de Lisboa. Mas é um passo, dos muitos que precisam ser dados, e que me deixou a pensar nesse problema.

É claro que a Câmara tem uma quota parte de responsabilidade. Política é, muitas vezes, escolher o menor de dois males, mas a total selvajaria do mercado imobiliário decorrente dos efeitos do turismo (Lisboa tem dos maiores rácios de casas de Alojamento Local por residente a nível mundial, o maior proprietário tem mais de 430 casas, e os 25 maiores proprietários têm cerca de 3000 casas, por exemplo) foi uma opção política.

Há, no entanto, outro problema maior. O endividamento das famílias foi, principalmente, potenciado pelo incentivo do Estado à compra de casa própria, nos últimos 40 anos, que tornou os bancos reféns do mercado imobiliário. A chave está aqui.

Os bancos não estão interessados em que o preço das casas desça. Os fundos de investimento imobiliário, cujos lucros dependem do aumento do preço das casas, também não. O Estado assobia para o lado e desresponsabiliza-se da sua função constitucional, enquanto dota a maioria do dinheiro que destina no OE para a habitação para a banca, enquanto beneficia as actividades especulativas em vez de beneficiar as necessidades da população.

Os sucessivos Governos desde o 25 de Abril têm sido perfeitos a jogar às escondidas no que diz respeito à habitação. Mas enquanto forem reféns das directrizes de Bruxelas sobre os défices e o investimento público, e enquanto privilegiarem a especulação financeira e imobiliária, o problema não se resolve. Mas será que querem?

02/04/2021

Do populismo (II)

Consta que o PSD está inclinado para o facilitismo e o populismo, considerando uma cronista do crime para cabeça de lista na Amadora. Seria uma escolha tudo menos inocente, dominada pelo calculismo político do mais nojento que há.

A escolha não seria feita para disputar a Câmara. Com pouquíssimas hipóteses de vitória, a ideia, claro, era disputar os votos e os temas do Chega, com ódio, boçalidade, divisão, com soundbytes inflamados. O primeiro treino para uma mudança de postura que o Rui "Não Há Racismo Em Portugal" Rio fará para se manter relevante.

A acontecer, é muito grave. Não tenho nem nunca tive qualquer simpatia pelo PSD. Mas não deixa de me causar espanto que um partido saído do 25 de Abril sequer considere entrar em narrativas dúbias por mero calculismo eleitoral. E por não perceberem que nem sempre o que fala mais alto tem razão.

03/02/2021

Da Guerra

Celeste não sabia o que era a guarda. Nunca a tinha visto. Tinha quatro anos e brincava, descalça, na rua da sua casa. A guarda foi chamada quando foram dar com Joaquim Tibério morto, ensanguentado, ali perto da casa de Celeste. Tinha ouvido dizer que, para os lados de Espanha, uma guerra fratricida dividia um país em dois. Assustou-se quando viu os guardas, nas suas fardas sisudas e sombrias. Correu para dentro de casa a gritar: “Vem aí a guerra! Vem aí a guerra!”.

Celeste não sabia o que era a guerra. Soube mais tarde, quase 40 anos depois, quando o seu filho mais velho foi chamado pelo Estado fascista para lutar uma guerra que não era a sua. Foi para Angola. Não voltou.

O aforismo do Santayana diz que só os mortos é que vêem o fim da guerra. E as mães dos que lá ficam, vêem o quê?

As mães dos que lá ficam vêem o seu próprio fim.

21/01/2021

Do sistema

Já está. O Trump já foi. Agora é Biden e Kamala. Acabou a vergonha, a ignorância, a estupidez. Agora é dignidade e moderação.
A dignidade a manter um sistema económico que só funciona para alguns. A dignidade a perpetuar o sistema jurídico que mais pessoas tem encarceradas no mundo, e que é ainda um exemplo de racismo institucional, que aprisiona percentualmente mais negros que aprisionava a África do Sul do Apartheid. O mundo e a América vão ser um lugar melhor quando for a sensatez e a dignidade de Biden a pedir "thoughts and prayers" para as vítimas de um massacre qualquer numa escola do Alabama.
Na minha opinião, qualquer um que seja eleito presidente dos EUA so o é porque não põe em causa os core values do sistema político. E não estou a falar da liberdade, da igualdade de oportunidades ou do primado da lei. Estou a falar na perpetuação de um sistema econonómico-financeiro que se quer explorador, desigual, racista, que mercantiliza pessoas, e que é sustentado por um sistema político sujeito aos interesses de grandes corporações.
Os chavões que parecem distanciar o Trump e o Biden - alterações climáticas, imigração, comércio, armas - são importantes mas são meros biombos de sala, como aliás se viu com a administração Obama, da qual Biden fez parte.

11/01/2021

Do Covid (II)

Até agora, as quase 8000 mortes relacionadas com o Covid aconteceram não por falência do sistema, por falta de cuidados de saúde, mas porque simples e infelizmente não foi possível salvar essas pessoas. Agora, um novo facto da pandemia começa a fazer sombra. Com o número de casos diários a aumentar exponencialmente, e com o proporcional aumento nos casos graves e nos internamentos, isso vai acontecer. Vão morrer pessoas porque os recursos humanos e materiais não vão chegar.

O SNS vai falhar. O Estado vai falhar. É claro que nós estamos habituados a isso. Basta relembrar Tancos e os incêndios de 2017, só para referir os casos mais óbvios desta administração de condomínio. E relembrar que, dos milhares de consultas, testes e exames de diagnóstico que foram adiados e cancelados por força de um sistema de saúde mono-temático resultou, inevitavelmente, em milhares de pessoas que não tiveram um tratamento adequado, e em muitos casos insuficiente para salvar essas pessoas.

O novo facto é que agora também esse sistema de saúde que se tornou mono-temático pode falhar. A tragédia pode ser enorme e é resultado do pouco ou nenhum investimento que durante a última década foi feito no SNS, propositadamente, com o intento de o tornar ineficiente para, depois, desmantelar e privatizar. É claro que nós estamos cá para pagar, seja na carteira ou no lombo.

Tudo isto para dizer uma ou duas coisas: que o Estado nos vai falhar, mais uma vez, e desta vez com uma magnitude maior. Que enquanto os nossos impostos continuarem a ir para a banca, para os conluios entre os grandes partidos, o sector privado e as PPP’s, e alguns se continuarem a preocupar com o RSI destes ou daqueles não vamos sair da cepa torta. E que podemos fazer alguma coisa em relação a isto já no dia 24 de Janeiro.