16/03/2022

Do sistema (III)

Primeiro, os factos: o lobbying ucraniano nos EUA em 2021 produziu mais de 10 000 contactos com políticos, jornais, think-thanks e diplomatas, entre outros. Gastou mais de 2 milhões de dólares para tentar bloquear o Nord Stream 2, através de políticos, e a propor uma abordagem mais agressiva com a Rússia, através de think-thanks e inclusive o ex-embaixador dos EUA na Ucrânia.

Não foi pressão para pacificar a situação, para uma resolução diplomática do conflito. Foi para a tornar mais hostil.

Ao mesmo tempo, a Rússia gastou 34 milhões, maioritariamente em propaganda. A indústria do armamento gastou 117 milhões de dólares. Todos estes dados são públicos. Mais detalhes nos comentários, para não deixar esta publicação muito grande.

Agora, a minha opinião: a guerra não serve nem os russos nem os ucranianos e não há bons e maus: há pessoas a morrer. A Rússia não sai beneficiada com a asfixação da sua economia a provocar graves problemas sociais, entre outros, e a Ucrânia conta com um triste e lamentável rasto de perda de vidas humanas e destruição.

Entretanto, o Nord Stream 2 foi parado, a indústria do armamento ganha biliões com a corrida armamentista. Entre outras coisas.
A Cimeira das Lajes, que provocou a invasão do Iraque e onde terão morrido mais de 500 000 pessoas começou há exactos 19 anos. As vozes cautelosas da altura tinham razão. Sabemos hoje coisas que não sabíamos na altura que desvirtuavam a verdade dos belicistas. Algo que me diz que daqui a uns anos as vozes cautelosas de hoje também terão razão.
E as vozes cautelosas só não querem nem ucranianos nem russos a morrer, nem ninguém a ganhar dinheiro com isso.

02/03/2022

Da guerra (II)

 Condenação, clara e inequívoca, e por extenso

Condeno a guerra. Condeno o Putin e a sua invasão. Condeno todos os que o elegeram e que não estejam arrependidos.

Condeno a ingerência, a violência e a confrontação. Condeno a escalada armamentista e a militarização.

Condeno as versões bossa-nova de clássicos do rock e do punk rock.

Condeno a NATO e quem a apoia, aqui no burgo, em atropelo do artigo 7° da Constituição.

Condeno todos os canalhas que se lançaram na mentira, e só não os chamo de filhos da puta porque, coitadas, não condeno as mães deles. A menos que elas também se tenham lançado na mentira. Nesse caso, também condeno as mães deles.

Condeno a instigação do confronto na Ucrânia. Condeno as francesinhas com pouco picante, as privatizações e o não cumprimento da carta da ONU e da Acta Final da Conferência de Helsínquia.

Condeno o mau vinho. Condeno a extrema-direita, a xenofobia, o racismo, a homofobia, a transfobia e a EMEL.

Condeno temperaturas acima de 25°, o imperialismo e o capitalismo. Condeno a comunicação social que faz da desinformação a arma.

Condeno o ódio. Condeno a intolerância e quem faz mal a animais.

Condeno-me por ser um pessimista. E condeno-me a lutar. Sempre.

11/02/2022

Do sistema (II)

Neste país que só fala das coisas depois de acontecerem, não tardará para que o tema da ordem do dia seja o bullying. Mas, cá no meu jeito de ver as coisas, há uma coisa que os urubus do sensacionalismo e boçalidade não vão dizer.

A existência destes fenómenos no âmbito escolar ou universitário são também um reflexo de uma sociedade que funciona assim. De um sistema estupidamente injusto e desigual, baseado na existência de relações sociais desiguais, que são perpetuadas de variadas formas, que legitimam a dificuldade em lidar com a diferença e vêm no individualismo uma beleza absoluta. E quando se perde o "nós", perde-se a humanidade.

Não são só desavenças pessoais; são uma réplica - ajustada ao lugar, ao sítio e aos meios - de uma disputa que o sistema estimula.

07/01/2022

Do ambiente

Enquanto escrevo este texto sobre uma palhinha de cartão - porque a UE obriga a que as palhinhas sejam de cartão - milhares de voos cruzam a Europa completamente vazios, porque a UE obriga a que as companhias o façam sob pena de perderem as vagas de aterrar e descolar nos aeroportos.

(Já não bebia leite com chocolate de pacote há muitos anos. Relembrei porquê. Não recomendo. Classificação: 1/5)

28/10/2021

Do OE

Em política, ao contrário do que os procedimentos da democracia liberal querem fazer parecer, ao contrário do que os comentadeiros do regime querem mostrar, ao contrário do que os grunhos querem invocar em busca de uma pseudo-ligitimação, o julgamento não se faz nas eleições. Faz-se na História.

É por isso que há partidos que duram 100 anos.

04/08/2021

Da inocência

O Manuel Pinho é inocente e lançou um site para o provar. O Vara é inocente. O Zeinal Bava é inocente. O Henrique Granadeiro é inocente. O Sócrates é inocente. O Isaltino era inocente e o Ricardo Salgado esqueceu-se de muita coisa mas não se esqueceu que é inocente. Os tipos das viagens à Turquia são inocentes. O Vieira é inocente, e inocentes são o Rui Rangel, a Fátima Galante e o Vaz das Neves. São todos inocentes e os seus crimes são todos alegados. Alegada fraude fiscal, alegada corrupção passiva, alegado abuso de poder, alegado favorecimento, alegado recebimento indevido de vantagem. Tudo é alegado neste sítio que é, alegadamente, um país.

Isto não é uma crítica à justiça, nem um ataque à presunção da inocência, nos quais acredito. Mas não deixa de ser curioso que todos os envolvidos nos casos de alta roda judicial se declarem sempre inocentes, e que esses sejam sempre grandes cabalas.

É por isto que a maior prova de avanço civilizacional não está em descobrirem uma vacina para a Covid-19 em meses, ou em dois ou três bilionários meterem os seus bilionários rabos no espaço em foguetões que parecem uma piroca. A maior prova de avanço civilizacional ainda está por ocorrer e é esta: que alguém desta laia chegue à porta do tribunal e que diga, alto e bom som, "sim senhor, eu roubei e não foi pouco".

08/04/2021

Da habitação

 A CM de Lisboa lançou, mais uma vez, o programa da Renda Acessível para jovens da classe média. É um programa com valor, ainda que meramente simbólico para resolver o problema da habitação na cidade de Lisboa. Mas é um passo, dos muitos que precisam ser dados, e que me deixou a pensar nesse problema.

É claro que a Câmara tem uma quota parte de responsabilidade. Política é, muitas vezes, escolher o menor de dois males, mas a total selvajaria do mercado imobiliário decorrente dos efeitos do turismo (Lisboa tem dos maiores rácios de casas de Alojamento Local por residente a nível mundial, o maior proprietário tem mais de 430 casas, e os 25 maiores proprietários têm cerca de 3000 casas, por exemplo) foi uma opção política.

Há, no entanto, outro problema maior. O endividamento das famílias foi, principalmente, potenciado pelo incentivo do Estado à compra de casa própria, nos últimos 40 anos, que tornou os bancos reféns do mercado imobiliário. A chave está aqui.

Os bancos não estão interessados em que o preço das casas desça. Os fundos de investimento imobiliário, cujos lucros dependem do aumento do preço das casas, também não. O Estado assobia para o lado e desresponsabiliza-se da sua função constitucional, enquanto dota a maioria do dinheiro que destina no OE para a habitação para a banca, enquanto beneficia as actividades especulativas em vez de beneficiar as necessidades da população.

Os sucessivos Governos desde o 25 de Abril têm sido perfeitos a jogar às escondidas no que diz respeito à habitação. Mas enquanto forem reféns das directrizes de Bruxelas sobre os défices e o investimento público, e enquanto privilegiarem a especulação financeira e imobiliária, o problema não se resolve. Mas será que querem?

02/04/2021

Do populismo (II)

Consta que o PSD está inclinado para o facilitismo e o populismo, considerando uma cronista do crime para cabeça de lista na Amadora. Seria uma escolha tudo menos inocente, dominada pelo calculismo político do mais nojento que há.

A escolha não seria feita para disputar a Câmara. Com pouquíssimas hipóteses de vitória, a ideia, claro, era disputar os votos e os temas do Chega, com ódio, boçalidade, divisão, com soundbytes inflamados. O primeiro treino para uma mudança de postura que o Rui "Não Há Racismo Em Portugal" Rio fará para se manter relevante.

A acontecer, é muito grave. Não tenho nem nunca tive qualquer simpatia pelo PSD. Mas não deixa de me causar espanto que um partido saído do 25 de Abril sequer considere entrar em narrativas dúbias por mero calculismo eleitoral. E por não perceberem que nem sempre o que fala mais alto tem razão.

03/02/2021

Da Guerra

Celeste não sabia o que era a guarda. Nunca a tinha visto. Tinha quatro anos e brincava, descalça, na rua da sua casa. A guarda foi chamada quando foram dar com Joaquim Tibério morto, ensanguentado, ali perto da casa de Celeste. Tinha ouvido dizer que, para os lados de Espanha, uma guerra fratricida dividia um país em dois. Assustou-se quando viu os guardas, nas suas fardas sisudas e sombrias. Correu para dentro de casa a gritar: “Vem aí a guerra! Vem aí a guerra!”.

Celeste não sabia o que era a guerra. Soube mais tarde, quase 40 anos depois, quando o seu filho mais velho foi chamado pelo Estado fascista para lutar uma guerra que não era a sua. Foi para Angola. Não voltou.

O aforismo do Santayana diz que só os mortos é que vêem o fim da guerra. E as mães dos que lá ficam, vêem o quê?

As mães dos que lá ficam vêem o seu próprio fim.

21/01/2021

Do sistema

Já está. O Trump já foi. Agora é Biden e Kamala. Acabou a vergonha, a ignorância, a estupidez. Agora é dignidade e moderação.
A dignidade a manter um sistema económico que só funciona para alguns. A dignidade a perpetuar o sistema jurídico que mais pessoas tem encarceradas no mundo, e que é ainda um exemplo de racismo institucional, que aprisiona percentualmente mais negros que aprisionava a África do Sul do Apartheid. O mundo e a América vão ser um lugar melhor quando for a sensatez e a dignidade de Biden a pedir "thoughts and prayers" para as vítimas de um massacre qualquer numa escola do Alabama.
Na minha opinião, qualquer um que seja eleito presidente dos EUA so o é porque não põe em causa os core values do sistema político. E não estou a falar da liberdade, da igualdade de oportunidades ou do primado da lei. Estou a falar na perpetuação de um sistema econonómico-financeiro que se quer explorador, desigual, racista, que mercantiliza pessoas, e que é sustentado por um sistema político sujeito aos interesses de grandes corporações.
Os chavões que parecem distanciar o Trump e o Biden - alterações climáticas, imigração, comércio, armas - são importantes mas são meros biombos de sala, como aliás se viu com a administração Obama, da qual Biden fez parte.

11/01/2021

Do Covid (II)

Até agora, as quase 8000 mortes relacionadas com o Covid aconteceram não por falência do sistema, por falta de cuidados de saúde, mas porque simples e infelizmente não foi possível salvar essas pessoas. Agora, um novo facto da pandemia começa a fazer sombra. Com o número de casos diários a aumentar exponencialmente, e com o proporcional aumento nos casos graves e nos internamentos, isso vai acontecer. Vão morrer pessoas porque os recursos humanos e materiais não vão chegar.

O SNS vai falhar. O Estado vai falhar. É claro que nós estamos habituados a isso. Basta relembrar Tancos e os incêndios de 2017, só para referir os casos mais óbvios desta administração de condomínio. E relembrar que, dos milhares de consultas, testes e exames de diagnóstico que foram adiados e cancelados por força de um sistema de saúde mono-temático resultou, inevitavelmente, em milhares de pessoas que não tiveram um tratamento adequado, e em muitos casos insuficiente para salvar essas pessoas.

O novo facto é que agora também esse sistema de saúde que se tornou mono-temático pode falhar. A tragédia pode ser enorme e é resultado do pouco ou nenhum investimento que durante a última década foi feito no SNS, propositadamente, com o intento de o tornar ineficiente para, depois, desmantelar e privatizar. É claro que nós estamos cá para pagar, seja na carteira ou no lombo.

Tudo isto para dizer uma ou duas coisas: que o Estado nos vai falhar, mais uma vez, e desta vez com uma magnitude maior. Que enquanto os nossos impostos continuarem a ir para a banca, para os conluios entre os grandes partidos, o sector privado e as PPP’s, e alguns se continuarem a preocupar com o RSI destes ou daqueles não vamos sair da cepa torta. E que podemos fazer alguma coisa em relação a isto já no dia 24 de Janeiro.

02/12/2020

Do Covid

O Majestic no Porto não fechou por causa do Covid. Fechou porque a bica custa 5 euros.

O restaurante do Ljubomir não fechou por causa do Covid. Fechou porque duas pessoas deixam lá no mínimo uns 100 euros.

Estes sítios precisam de apoio porque têm trabalhadores a precisar de manter os seus postos de trabalho, mas é preciso por as coisas em perspectiva. Todos os estabelecimentos comerciais estão a passar por dificuldades, mas se calhar os que estão pior são aqueles que se viraram apenas para o turismo e nunca quiseram que o português comum lá metesse os pés.

17/11/2020

Do Fascismo (II)

Já aqui tinha escrito, na altura do Avante, sobre o combate que a direita preferia fazer à esquerda, nomeadamente o BE e principalmente o PCP, em detrimento de combater forças políticas não-democráticas. Na altura, ficou uma coisa por dizer, porque ainda não se tinha materializado e eu não esperava que viesse a acontecer tão cedo.

Aconteceu nos Açores. Aquelas boçalidades que o Ventura diz são para ser combatidas, que disso não haja dúvidas, mas o facto dessas provocações e polémicas serem mediatizadas até à exaustão tira importância às questões sociais e económicas do seu programa. Por exemplo, quando o Ventura fala na redução de impostos só têm em vista uma coisa: reduzir a receita, para reduzir a despesa. Isso traz o óbvio desmantelamento do pouco Estado Social que já temos e que, vê-se agora, nos é tão necessário. E se calhar é por causa disso que o PSD e o CDS ficam tão calados.

Acresce um factor, essencial no caso dos Açores: o arquipélago tem a taxa mais elevada de risco de pobreza ou exclusão social do país, que deve andar acima de 1/3 da população açoriana. Deixem-nos à solta com a questão dos subsídios (que foi um dos pontos referidos do acordo) e depois voltem lá para apanhar os cacos.

04/09/2020

Do Fascismo

Uma pequena nota sobre o Avante, a celebração do 25 de Abril, o 1º de Maio...

A direita, com um apoio muito relevante de alguns meios de comunicação social, está mais preocupada em combater o PCP do que outras forças fascizantes, racistas e xenófobas. Há tempos, inclusive, o Rui Rio - na sua aflitiva campanha para se manter relevante - admitiu que em determinadas circunstâncias o diálogo com o partido do Ventura era possível.
Aquilo que o partido do Ventura defende são ideias que, infelizmente, sempre por cá andaram. É grave quando algum boçal se aproveita disso, quando dá eco às tendências mais nojentas da nossa sociedade, alicerçado em notícias falsas, na subversão da realidade, e num exército de perfis falsos a postar estas tretas no Facebook para deleite dos seus discípulos idiotas, que partilham enquanto estão na sanita a dar banho ao Ventura.
É grave e perigoso. Tão perigoso como as forças ditas moderadas não combaterem estas ideias ou, pior, as normalizarem. Os exemplos estão na história. E também está na história que socialistas e comunistas lutaram pela democracia e pela liberdade, e um facho nunca o fez.

15/03/2020

Da saúde

Portugal sofre um pouco do síndrome da ambulância atrasada. Vamos cheios de boas intenções, mas tarde. Não conseguimos ter um pensamento de prospectiva. Precisamos que eventos despoletem o debate, a preocupação, a percepção que afinal precisamos de investir aqui ou ali.

O caso mais recente é o do Serviço Nacional de Saúde. Caralho, andaram anos e anos a tratar do seu desmantelamento. Houve uma estratégia: o desinvestimento desculpado pelos défices e pela dívida, o aumento das taxas moderadoras, o encerramento de serviços e de postos, a desvalorização do seu pessoal. Entre outras milhentas coisas que não vale a pena aqui referir porque a vossa quarentena terá certamente mais que fazer.

O objectivo? Torná-lo ineficiente, com falhas, para puderem entregar a saúde a grupos económicos já que o Estado, coitadinho, não dá conta dele. Privatizar.

É claro que depois dá merda. Daqui a pouco, se o momentum não se perdeu de ontem, vai tudo para a varanda num gesto patriótico cantar o hino em apoio aos enfermeiros e aos médicos. [Nota: num grupo do bairro de Alvalade, no Facebook, alguém sugeriu que cantassem a Grândola, mas depois muitos disseram que isso era demasiado comunista. Fachos.]

Isso é bonito. É um gesto bonito para quem merece. E se é verdade que esta altura serve só e apenas para cuidar de quem precisa e para todos nos unirmos contra um vírus lixado, não é menos verdade que após isto um período de reflexão terá que existir.

Esta é uma questão primordial. Se queremos que isto deixe de ser um sítio - ainda por cima mal frequentado, como dizia o Almada - e passe a ser um país que cuida dos seus, o SNS (e a educação, já agora) tem que ser uma prioridade geracional.

02/02/2020

Do sentido da vida

Há uma tribo andina que diz que quando nós temos muitas dúvidas significa que os nossos antepassados também as tiveram e nunca as resolveram.

Não é que acredite, mas conheço o meu pai e conheço-me. Somos homens cheios de dúvidas. Assim o postulado andino faz sentido porque imagino que, entre a dura vida do campo e a nobre arte de fazer e criar filhos (foram 11), o meu avô paterno não deve ter tido tempo para responder a todas as perguntas que a sua existência lhe colocou.

Assim, herdámos uma casita na aldeia, uns terrenos bons para não se fazer nada deles, e uma porradona de questões e dúvidas existenciais, comichões intelectuais, perguntas que nem sabemos bem conceptualizar.

Confesso que, a fundo, não sei como o meu pai lida com este facto. Eu leio. Ouço álbuns. Vejo cidades, quadros, esculturas. Vejo filmes. A arte serve-me numa função dupla: se nela procuro a resposta para questões que às vezes nem sei quais são, é ela também o meu escape, o meu refúgio, para conviver com o marasmo e com o facto de não conseguir responder a tudo.

O humor é, provavelmente, a arte que melhor lida com esta dialética, a de procurar as respostas e chorar - ou rir para não chorar - por nunca as encontrar. Os Monty Python são a quinta-essência disto tudo. Nem vale a pena falar da sua importância cultural, dos desenvolvimentos que trouxeram ao humor, da influência. Tiveram tanta filosofia como Sartre e Camus. Do destino ao nihilismo, do epicurianismo à morte, da Caverna de Platão á lógica de Aristóteles, da felicidade ao sentido da vida. Está lá tudo, e parido de uma maneira genial que mais ninguém conseguiu emular. Aprendi – e aprendo – muito com eles.

Aos meus filhos, não deverei deixar muito. Se não ficar rico e famoso com a minha banda, deixarei os bens que a minha vida de contabilista me permitir, mais uma casita na aldeia, uns terrenos bons para não se fazer nada deles, e uma porradona de questões dúvidas existenciais, comichões intelectuais, e perguntas que eles nem saberão bem conceptualizar. Mas menos que as que o meu avô me deixou, porque ele nunca viu Monty Python.

29/11/2018

Do pessimismo

Sou um pessimista. O adágio do Canto III do Inferno de Dante podia ser meu também: “deixai toda a esperança, ó vós que entrais!”. Se a ideologia é um modo de ver o mundo e a vida, a minha ideologia é a do pessimismo. Acho sempre que tudo vai dar merda. O Trump vai dar merda. O Bolsonaro vai dar merda. O Passos Coelho voltará e, claro, vai dar merda. O Acordo Ortográfico nunca vai ser revogado. O próximo filme do Tarantino vai ser mau e eu não vou conseguir ver mais nenhum concerto do Jorge Palma. O Sporting não mais voltará a ser campeão. O aquecimento global vai dar merda e vão dar cabo da Amazónia. Vai haver uma vaga de calor gigantesca que durará 30 anos, que decerto me deixará pelas ruas da amargura porque tudo o que é mais de 23 graus já me é penoso, e o mundo inteiro vai entrar numa guerra mundial que acabará com os Estados Unidos a tomarem a fonte da Ónega, em Pendilhe, e com o seu presidente a fazer um discurso, em sandálias e calções porque vai estar mesmo muito calor, no Largo da Latada.

A minha vida não será certamente melhor. Andarei de emprego em emprego porque nada me satisfaz, com a constante de nunca ter lugar para estacionar, e sem um rumo. E se não sabendo para onde vou qualquer estrada me lá leva, como dizia o George Harrison, as minhas estradas, as figuradas e as literais, estarão sempre esburacadas e com muito trânsito. E vai estar calor lá fora e o meu ar condicionado vai estar avariado. As estradas vão ter sempre SCUT’s, e vou ter sempre que ir aos correios porque eu, estúpido, nunca meterei Via Verde. Casarei, eventualmente, para viver a máxima do Lampedusa n’O Leopardo: chamas por um ano, cinzas por trinta. Claro que o meu casamento não durará trinta anos: cedo ficarei um bêbado divorciado, demasiado bêbado para me lembrar se me divorciei porque bebia muito ou se comecei a beber porque me divorciei. Se tiver a sorte de chegar a velho, acabarei sozinho e careca, num lar, sempre com os pés frios, mesmo com o raio da vaga de calor lá fora. Nunca conseguirei fazer as licenciaturas em arquitectura ou história que tanto quis fazer por gosto. Terei um ou dois filhos, que certamente, só para me lixarem o juízo, ou serão do Benfica ou uns conservadores nojentos, e que nunca me irão ver. A senhora do lar vai-me trazer um pouco de água, muito pouco, e vai pô-la demasiado longe para lhe conseguir chegar sentado. Vou estar condenado a ver TV o dia inteiro, a babar-me, a ver anúncios da Trivago até ao fim dos meus dias – sim, porque até com a porra duma guerra mundial essa merda vai passar na TV.

Há duas fontes para este pessimismo, que reconheço ligeiramente empolado nos dois parágrafos em cima. O primeiro é a nossa condição de mortal. Eu sou ateu: para mim, isto vai acabar mal. O segundo é bem mais negro. O pessimismo devia ser a condição natural do homem, porque qualquer pessoa que conheça suficientemente bem a História, que não é mais do que a ciência da natureza humana, consegue perceber que nós arranjamos sempre novas e inovadoras maneiras de fazer esterco. Se calhar não sou eu que sou pessimista. Se calhar é o mundo que é mau. Se calhar é o homem que é mau.

N’A Raiva, do Sérgio Tréfaut, o homem mau é personificado num latifundiário. Claro que concordo com a caracterização. Vi o filme e amei, e impeliu-me a escrever sobre isto. Pode não parecer mas isto é uma crítica ao filme - não tanto sobre o que ele é, mas sobre o que me fez pensar. Eu não descobri a fórmula – a minha fórmula – para lidar com as adversidades e com os backslaps da vida e do mundo a ver o filme. Mas quis escrever sobre como filmes destes nos libertam do marasmo, sobre como como a arte é o maior escape, sobre como o mundo é um lugar melhor quando se pode ler Dante, ouvir Beatles e ver Visconti, sobre como o amor - seja à terra, seja à causa, seja a alguém - é uma força poderosíssima. Sobre como – e acho que é essa a grande mensagem do filme – a única coisa que às vezes podemos fazer é lutar. E sobre como enquanto pudermos lutar, tudo faz sentido.

08/11/2018

Do Leonard Cohen

Lembro-me bem da primeira vez que ouvi falar do Leonard Cohen. Era 2009. Eu tinha 16 anos e arrumava caixas de fruta na mercearia da minha mãe a cantarolar Led Zeppelin e Tara Perdida. Ouvia Black Sabbath, Clash e Rush, o velho rock and roll de guitarradas e raiva a sair em forma de power chords (e Zeca Afonso, claro). E, naquela noite, estava no Estádio de Alvalade com o meu tio, a poucos minutos de começar o concerto dos AC/DC, quando passou um anúncio de um concerto do Cohen nos ecrãs gigantes. O meu tio apontou para o ecrã: “este gajo é fixe”. Olhei. Onde ele viu o fixe, eu vi um velho de chapéu e fato preto a cantar uma espécie de valsa, achei na altura, provavelmente ouvida por outros velhos de fato preto que tiraram o chapéu por deferência aquele tipo com nome judeu. Era a “Dance Me to the End of Love”. Não gostei, e eu ia ver o Angus Young a partir aquela merda toda, não tinha tempo para velhos angustiados.


Nessa noite, quando cheguei a casa, fui pesquisar o velho. O nome, por acaso, não me saiu da memória. E lembro-me do assombro instantâneo que senti. Percebi na altura que algo havia mudado. Nessa noite, sei-o hoje, tive um guarda-roupa à minha frente. E eu escolhi o fato preto e o chapéu, para usar a vida toda.


(o concerto dos AC/DC foi óptimo e, entretanto, já agradeci ao meu tio)

25/09/2018

Da tourada

Nenhuma tradição escuda a tourada. Nenhuma liberdade justifica a crueldade. E não é possível nenhuma erudição ou elevação para contestar tais actos, de tão bárbaros que são. Só a caracterização: filhos da puta. Todos. Filhos da puta

19/01/2018

Do feminismo pop

Acho que há uma tendência para despolitizar alguns temas, prevalecendo a acção individual e o seu elogio, a atitude, em vez das estruturas e da acção política colectiva. A onda feminista é um bom exemplo disso. Creio que prevalecem os discursos de celebridades, as “hashtags”, o “empowerment”, os elogios às mulheres que chegam a CEO de grandes empresas, às modelos que confrontam o statu quo com as suas pernas não depiladas.

As redes sociais e o seu culto ao individualismo têm algo que ver com isso, porque esses acontecimentos são mais facilmente virais e partilháveis, e é isso que define esta onda feminista. Mas acredito também que o impacto que o sexismo e a sociedade patriarcal têm na esfera privada e pessoal de cada mulher deva impelir para isso. Afinal, um problema que ataca individualmente pode ter uma resposta individual.

Eu não tenho absolutamente nada contra isso. Acho que todas as formas de luta - se é disso que se trata – são legítimas. Mas é preciso escolher como queremos fazemos a luta. Podemos acreditar que as imagens e os exemplos das mulheres que sobem as escadas do dinheiro e do poder se traduzem em benefícios para o resto das mulheres do mundo, e que isso é suficiente. Ou, então, podemos politizar a questão e lutar contra um sistema que legitima e aumenta as desigualdades, que precisa delas para se manter, que tem nele grupos sub-representados e em desvantagem estrutural.

A cultura pop pode ser um óptimo instrumento para disseminar as ideias pela sociedade. Mas uma mudança efectiva e real só se consegue, creio, politizando a questão e levando-a ao debate, à rua, ao voto.